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“Quem construiu Tebas das sete portas?
Nos livros estão os nomes dos reis.
Foram os reis quem arrastou os blocos de pedra?”

Bertold Brecht, “Perguntas de um operário letrado”, 1936

Património de origem portuguesa no mundo propõe-se constituir, antes de mais, um exaustivo inventário dos sítios e monumentos que atestam a presença portuguesa nos vários continentes. Com uma introdução de José Mattoso, comum aos três volumes, a obra organiza-se em quatro partes (já que o volume sobre África se divide em dois), as quais seguem um esquema uniforme, com uma introdução, uma inventariação dos sítios e monumentos, um texto de enquadramento relativo a cada zona que os agrupa e, ainda, um texto descritivo para cada um dos edifícios e maioria dos sítios. Esta organização revela-se eficaz, lidando bem com a dispersão geográfica, cronológica e tipológica dos casos. Trata-se de uma recolha monumental, rica e múltipla, que constitui, e constituirá, um precioso instrumento de trabalho para os investigadores nesta área. Daí que pareça importante, também, discuti-la nos seus pressupostos.

“Cabe a Portugal reivindicar um património como seu, dado que o mundo não é seu”? (América do Sul, p. 22) pergunta-se Renata Araújo na introdução ao volume que coordena. A questão toca num problema fundamental, ainda que a autora, para justificar a designação “de origem portuguesa”, aqui se respaldando na noção de “universalidade”, acabe por se servir dos mesmos pressupostos que pouco antes se propusera questionar. Mas seriam portugueses os que levantaram as paredes? E das pedras, taipa, madeira e telhas, o que seria português? Mesmo a iniciativa, a concepção e as formas, quanto nestas construções não partiu das populações e poderes nativos? Segundo Walter Rossa (Ásia, p. 41), “acontecimentos, estruturas e conjunturas [...] tudo isso interagia”. Nessa interacção, a parte portuguesa não era a única e nem sequer, em muitos casos, a maioritária ou a mais significativa. Acrescente-se que, se o território é a primeira das infra-estruturas (numa feliz expressão do mesmo autor) e se “à escala da cidade o território é [...] fonte e objecto” (p. 53), então, a origem deste património fica, desde logo, condicionada pela raiz. Como nos diz Paulo Varela Gomes, o epíteto “português” não é sustentável por qualquer critério objectivo, tratando-se, antes, de uma questão subjectiva imposta pela perspectiva de quem escreve. No volume sobre a América do Sul, p. ex., redigido quase exclusivamente por autores brasileiros, fala-se do património de quem? Em que medida a origem dos enunciadores do discurso poderá condicionar a própria noção de património ou, ainda, a visão que se tem da sua conservação? Atente-se, p. ex., na inexistência no volume sobre a América do Sul, ao contrário daquele sobre a Ásia – em que 17 dos 19 autores são portugueses –, de vários juízos sobre a qualidade de recentes intervenções de reabilitação.

Em termos práticos, os textos introdutórios sobre a América do Sul e a Ásia seguem um modelo similar: expõem o tema e o contexto histórico-geográfico da presença portuguesa, fazem um balanço dos estudos existentes e indicam os critérios seguidos na selecção de casos e no seu agrupamento em zonas. Ao nível do conteúdo, no entanto, o primeiro desses volumes revela uma coesão que é menos evidente no segundo, desde a introdução aos textos específicos a cada edifício, o que talvez resulte da posição privilegiada da coordenadora, brasileira radicada em Portugal, e do grupo de colaboradores que reuniu, com trabalho enquadrado pelo vasto corpo de pesquisa que se tem vindo a realizar no Brasil.
     Já no volume sobre a Ásia, os textos individuais de cada sítio/monumento/edifício apresentam grandes variações, reflectindo a sua diversidade cronológica e geográfica – da Índia quinhentista a Macau e Timor contemporâneos –, bem como o desigual estado dos conhecimentos e as diferentes perspectivas dos autores. A esta variedade tentam, com eficácia, dar coesão os textos de Walter Rossa, discorrendo sobre a evolução da presença portuguesa e as várias formas de que ela se revestiu – Coroa, Igreja, comerciantes, aventureiros –, mas também sobre as inevitáveis fragilidades, dado o “menor suporte histórico” (p. 58), de algumas subdivisões geográficas adoptadas. Realce, ainda, para a abordagem a algumas tipologias locais na Índia – arquitectura militar e religiosa, casa brâmane, casas rurais – por corresponderem a recentes estudos e pelo que permitem, futuramente, “articular com […] fenómenos análogos […] (linguísticos, religiosos, alimentares, do vestuário)” (Mattoso, p. 14).
  
O volume sobre África compõe-se de duas partes. A primeira, coordenada por Filipe Themudo Barata, abarca duas áreas geográficas muito distintas – a costa de Marrocos e o Golfo Pérsico. De toda a obra, é a menos coerente. O argumento de que “o Norte de África, o Golfo Pérsico e o Mar Vermelho [...] eram o lugar por excelência dos inimigos da Fé” (p. 25) assume-se como um guarda-chuva sob o qual muita coisa caberá – mas os nexos, num argumento já tantas vezes desmontado, são difíceis de encontrar; nesse sentido, de resto, aponta o texto de Cláudio Torres, inserto no mesmo volume, regido pelo pressuposto de um intenso intercâmbio cultural e comercial que, durante três séculos, terá unido as costas do Algarve, Andaluzia e Marrocos. Diz-nos Mattoso ser “preciso [...] evitar confundir as épocas, e as situações” (p. 13). Indiciar que o Islão teria sido o factor determinante da expansão ultramarina parece servir sobretudo para justificar uma junção ditada por uma questão editorial de equilíbrio entre volumes. De resto, apoia-se na ideia de um contínuo territorial, que passa pela inclusão de Mar Vermelho no título quando, estranhamente, nesse espaço nenhum caso é inventariado.
     Já em termos de inventariação, exaustiva, se constrói um corpo documental sólido, ainda que a inclusão de locais com meros vestígios ou apenas simples notícias da presença de portugueses (como Gorgi, na Geórgia) possa levantar questões que, de novo, se prendem com a própria noção de património (construído). Por outro lado, como parte substancial dos casos enumerados diz respeito a fortificações, talvez se justificasse um texto autónomo, à semelhança do volume sobre a Ásia.
     A segunda parte do terceiro volume, coordenada por José Manuel Fernandes, ocupa-se da África Subsaariana. É a área com maior diversidade: geográfica – abrange as duas costas africanas, oeste e leste –, cronológica – do século XV até 1974 – e territorial – das pequenas ilhas e locais isolados aos extensos territórios de Angola e Moçambique. Se, nas palavras do coordenador, “a predominância do contemporâneo [...] desaconselha grandes interpretações globais”, o que se segue parece, no entanto, infirmá-lo. As 105 páginas introdutórias apresentam, se não uma interpretação, pelo menos uma abordagem global, acabando por impor um mesmo quadro interpretativo a todos os territórios africanos. A cronologia, em três grandes períodos – 1450-1820, 1820-1930 e 1930-1975 –, sendo pertinente para Angola e Moçambique, é-o menos para os restantes territórios, cuja menção é episódica em vários subcapítulos. A utilização de categorias como romântico-revivalista, arquitectura classicizante, regionalismos e eclectismos, arquitectura do ferro e do betão armado, poderia encontrar-se num guia de uma cidade europeia, ficando, por isso, a dúvida sobre a relevância da sua transposição para territórios africanos marcados por outro tipo de fenómenos, de resto assinalados por J. M. Fernandes noutros pontos do texto. A descrição dos sítios e edifícios, mera ilustração dos fenómenos que vão sendo expostos, torna-se redundante ao praticamente coincidir com o inventário final – do urbanismo à arquitectura militar, religiosa, civil e de habitação. O mesmo sítio acaba por ser descrito em três secções diferentes do volume – na introdução, no texto da respectiva zona e no inventário. Redundância que se evidencia noutros lugares do texto como, p. ex., na coexistência dos dois títulos: “Arquitectura de infra-estruturas e equipamentos” e “Os equipamentos e as suas arquitecturas”.
     A síntese inaugural, “Traços comuns...” – ainda que sobretudo assente numa enumeração das diferenças e da variedade de situações – é, no entanto, bastante pertinente. A extensa continentalidade de Moçambique e Angola e a dispersão de locais nas costas atlânticas e do Índico são coerentemente articuladas com dois grandes ciclos: ocupações pontuais na costa até ao século XVIII; e a consolidação territorial e urbana dos séculos XIX e XX, ocorrida após as penetrações para o interior. Igualmente de assinalar é a importância dada às infra-estruturas, principalmente em Angola e Moçambique, e ao seu papel no controlo e presença efectiva nos territórios. Menos consequente com este facto é, porém, a selecção de obras no inventário, já que o número de casos de infra-estruturas é reduzido face ao lugar de destaque que merecem no texto geral.
     Esta diversidade de abordagens tende, no entanto, a desaparecer sob aquilo que Mattoso designou como o resultado final desta obra: “um ‘dicionário’ de sítios e monumentos” (p. 16). Num colóquio recente, também António Hespanha valorizou, nestes volumes, não tanto os esquemas interpretativos elaborados pelos autores mas, sobretudo, o facto de a obra constituir uma base de dados neutra, estável e objectiva. Uma formulação que alude tanto à inevitável desactualização dos textos quanto à importância dos dados inventariados: sítios, obras, indícios e vestígios materiais, datas, circunstâncias e pessoas. Mas esta neutralidade é, talvez felizmente, contrariada pela heterogeneidade da obra. 
     Apontem-se alguns casos mais significativos. No volume sobre o Brasil, foi resolvido incluir o Real Gabinete Português de Leitura (1887) e a Embaixada de Portugal, em Brasília (1978), assim se transgredindo uma linha de demarcação – a da independência – assumida como regra no volume (e, diga-se, em toda a obra). Parece claro que “a data de independência não representa [...] uma rutura” – mas o argumento de uma linha de continuidade reportável a “processos de sedimentação cultural [...] longos” (p. 30) não se vislumbra nestas duas iniciativas pontuais e importadas posteriormente. Abertas estas duas excepções, cabe perguntar em que medida seria igualmente justificável, neste e nos restantes volumes, a inclusão de outras embaixadas ou obras promovidas por comunidades de imigrantes.
     No volume sobre a Ásia, o sítio das ruínas da igreja de São Paulo (Macau) tem duas entradas diferentes (pp. 497 e 515), uma relativa às ruínas e a outra à sua musealização. Numa obra onde se enuncia a primazia dos sítios e dos conjuntos sobre os edifícios e as partes individuais, esta separação é, no mínimo, estranha. Nagasaki (Japão) é apontado como um caso nos limites do aceitável quanto à sua inclusão, já que é o extremo cuidado com o património que leva à inexistência de eventuais vestígios de origem portuguesa. O paradoxo da prática cultural japonesa permitiria, e mereceria, uma reflexão frutuosa sobre o “conceito teórico do património” e sobre a natureza de inventários deste tipo.
     Outros casos, algo inusitados, no volume que trata do Norte de África, sugerem pistas para um maior aprofundamento desta noção. Veja-se a referência a algumas prisões, de origem não portuguesa e sem vestígios materiais, que são inventariadas apenas por ali se saber terem estado “cativos portugueses” (p. 109). E, depois, Alcácer-Quibir. Numa obra de arquitectura e urbanismo, classificar um campo de batalha onde não houve qualquer construção ou assentamento urbano parece, no mínimo, pouco consistente. Seria o mesmo que a Espanha classificar, como património construído, o Canal da Mancha, ou os Estados Unidos Little Big Horn.
     Por último, um apontamento ao nível geral da obra: o facto de menos de 40 casos serem inventariados como espaços ou conjuntos urbanos, enquanto mais de 1600 o são como edifícios. Talvez inevitável, mas também uma persistência, na história do urbanismo, de critérios herdados da história da arte e já muito criticados e superados.
    
A eventual variedade e fragilidades manifestas na selecção de objectos nesta obra vêm apenas confirmar as dificuldades inerentes à própria noção de património e àquela de origem portuguesa. O próprio pressuposto da sua universalidade implicaria que eles fossem reconhecidos numa diversidade que transcende esse ponto de origem. Fugir ao reflexo no espelho, i.e., à busca da própria identidade numa atestada diferença, não é, contudo, simples. Daí que nesta obra, que trata de realidades diversas, o qualificativo de “português” designe umas vezes a origem, outras influências, e outras tão-só um registo de presença. Talvez bastasse evocar o catálogo de Borges para nos recordar que não há listas neutras nem imunes à influência de quem as elabora.

Nota final: em termos de edição, o trabalho gráfico é extremamente cuidado. As diferentes áreas estão sempre identificadas e a maioria dos sítios tem uma planta aérea “fotográfica” com tratamento gráfico adicional bastante sugestivo. Também o índice geral dos sítios e edifícios no final de cada volume constitui uma garantia segura de orientação nas mais de 1500 páginas da obra. Três reparos pontuais: nos textos-ficha dos edifícios a indicação do arquitecto-autor é variável – ora é indicado, ora é omitido – e algumas nomeações não são uniformes – p. ex., em NAPE (Macau), “A” designa quer “Aterro” quer “Áreas”. Os glossários finais, estranhamente, diferem entre si; alguns vocábulos têm definições discrepantes – v. braça (1,82 ou 2,20 m), galilé, beiral –, outros herméticas – v. contraventamento, orelhão, reparo – ou indutoras de erro – caso de pilotis, em que se chama espaço público ao piso térreo. Por último, um evidente lapso, que uma obra desta importância e qualidade não mereceria: a afirmação de que os Jesuítas se introduziram em Ormuz “anos antes [...] da sua ocupação [...] por Afonso de Albuquerque, em 1515” (África, p. 32).|

 


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